cafundó

08 fevereiro, 2006

segunda - talvez nada disto seja verdade... todo este silêncio, e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho... olhai bem para tudo isto... parece-vos que pertence à vida?...

primeira - não sei. não sei como se é da vida... ah, como vós estais parada! e os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...

segunda - não vale a pena estar triste de outra maneira... não desejais que nos calemos? é tão estranho estar a viver... tudo o que acontece é inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... vede, o céu é já verde... o horizonte sorri ouro... sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar...

primeira - chorastes, com efeito, minha irmã.

segunda - talvez... não importa... que frio é isto?... ah, é agora... é agora!... dizei-me isto... dizei-me uma coisa ainda... por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?...

primeira - não faleis mais, não faleis mais... isso é tão estranho que deve ser verdade. não continueis... o que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir... tenho medo do que não chegastes a dizer... vede, vede, é dia já... vede o dia... fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... vede-o, vede-o... ele consola.. não penseis, não olheis para o que pensais... vede-o a vir, o dia... ele brilha como ouro numa terra de prata. as leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram... se nada existisse, minhas irmãs?... se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?... porque olhastes assim?...

(não lhe respondem. e ninguém olhara de nenhuma maneira.)


fernando pessoa. o marinheiro, 1913.

1 Comments:

  • É muito lindo e bom de e ler.
    BeijÃo Glaucia !
    O BLOG TÁ BACANA.

    By Blogger José, at 12:02 AM  

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