cafundó

22 fevereiro, 2006

retrato

o vento que te trouxe encheu o ar da sala e eu respirava vento. por isso, olhava para o mundo quieta. meu olhar era quase o primeiro.
ainda nao sei a que se deve tal paisagem:
saudade
amor
desejo
sei apenas que respirei tranqüila e contemplei a cena:
um rosto que não cabia nos retratos.

decerto

acho que a vida dói, mesmo quando nao sinto.

16 fevereiro, 2006

offline

ao cleyton,
por me deixar falando sozinha

saiu?
tchau.
em vão.
nao vê mesmo
meu aceno
qualquer gesto
nao vê?
eu aqui
você longe e cego aos meus apelos
nao escuta ruído meu
e eu me debato

e grito
peço sua atenção
e chamo
e chamo
e chamo
sem resposta
resposta nenhuma
nem mesmo um até
entao tá.

_______________
A mensagem a seguir não pôde ser entregue a todos os destinatários:

saiu?
tchau.
em vão.
nao vê mesmo
meu aceno
qualquer gesto
não vê?
eu aqui
você longe e cego aos meus apelos
não escuta ruído meu
e eu me debato
e grito
peço sua atenção
e chamo
e chamo
e chamo
sem resposta
resposta nenhuma
nem mesmo um até
entao tá.

13 fevereiro, 2006

bashô

porta fechada
deito-me no silêncio
prazer da solidão

o artista e a modelo

no acabamento da matéria
meu rosto era só manchas
em parte eu era a mulher da pintura
em parte ele mentia com vermelho, marrom e preto
me querendo de todas as cores

eu me mentia modelo de semi-tons-semi-nua
mentia carne no meu rosto, fingia textura de cabelo
e simulava pano no meu colo descoberto
mentia um amor sem fim
inventava ser amada

a mentira é o arremedo do poema
sem ela nao há a arte nem o amor
e "tudo o que não invento é falso"

yogue

entre um ar e o outro
o frio e o morno
entre o morno e o frio
nao existo
.
.
.
.
.
respiro

08 fevereiro, 2006

segunda - talvez nada disto seja verdade... todo este silêncio, e esta morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho... olhai bem para tudo isto... parece-vos que pertence à vida?...

primeira - não sei. não sei como se é da vida... ah, como vós estais parada! e os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente...

segunda - não vale a pena estar triste de outra maneira... não desejais que nos calemos? é tão estranho estar a viver... tudo o que acontece é inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... vede, o céu é já verde... o horizonte sorri ouro... sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado em chorar...

primeira - chorastes, com efeito, minha irmã.

segunda - talvez... não importa... que frio é isto?... ah, é agora... é agora!... dizei-me isto... dizei-me uma coisa ainda... por que não será a única coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho dele?...

primeira - não faleis mais, não faleis mais... isso é tão estranho que deve ser verdade. não continueis... o que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser de mais para a alma o poder ouvir... tenho medo do que não chegastes a dizer... vede, vede, é dia já... vede o dia... fazei tudo por reparardes só no dia, no dia real, ali fora... vede-o, vede-o... ele consola.. não penseis, não olheis para o que pensais... vede-o a vir, o dia... ele brilha como ouro numa terra de prata. as leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram... se nada existisse, minhas irmãs?... se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa nenhuma?... porque olhastes assim?...

(não lhe respondem. e ninguém olhara de nenhuma maneira.)


fernando pessoa. o marinheiro, 1913.

06 fevereiro, 2006

canto

e era sempre assim, de tanto procurar ela cansava e parava triste num canto. num canto triste se perdia da procura que nem ela supunha ao certo. procurava por instinto [. procurava o quê?] um mundo, uma vida, um cheiro, uma alegria submersa. [procura vã.] exausta encontrava sempre aquele canto, que embora triste era melhor que o vazio, era mais doce que o silêncio e mais bonito que a própria tristeza.
ali sonhava e depois dormia.