cafundó

21 junho, 2006

a descoberta do mundo

"havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que por admiração se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. como eles admiravam estarem juntos! até que tudo se transformou em não.
tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. então a grande dança dos erros. o cerimonial das palavras desacertadas. ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. no entanto ele que estava ali.
tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos.
só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. tudo, tudo por não estarem mais distraídos."

clarice lispector.

12 junho, 2006

o ameaçado, um poema de jorge luis borges

é o amor. terei de me esconder ou fugir.
crescem as paredes de seu cárcere, como em um sonho atroz. a bela máscara mudou, mas como sempre é a única. de que me servirão meus talismãs: o exercício das letras, a vaga erudição, o aprendizado das palavras que usou o vago norte para cantar seus mares e suas espadas, a serena amizade, as galerias da biblioteca, as coisas comuns, os hábitos, o jovem amor de minha mãe, a sombra militar de meus mortos, a noite intemporal, o gosto dos sonho?
estar contigo ou não é a medida do meu tempo.
o cântaro já se quebra sobre a fonte, já se levanta o homem à voz da ave, já escureceram os que olham pelas janelas, mas a sombra não trouxe a paz.
é, eu sei, é o amor: a ansiedade e o alívio de ouvir tua voz, a espera e a memória, o horror de viver o sucessivo.
é o amor com suas mitologias, com suas pequenas magias inúteis.
há uma esquina pela qual não me atrevo a passar.
agora os exércitos me cercam, as hordas.
(este quarto é irreal; ela não o viu.)
o nome de uma mulher me delata.
doí-me uma mulher por todo o corpo.

[lido em 10/06/06, como pude pensar o amor sem ter lido isso antes?]